Jogos AAA, como são chamadas as grandes produções dos videogames, só podem ser desenvolvidos por equipes grandes, compostas de artistas, programadores e designers que, cada qual com sua especialidade, contribuem para produzir um produto comercial que deve, acima de tudo, gerar lucro para a companhia que está investindo no projeto. É assim que funcionam as empresa - qualquer empresa. Ainda que estúdios independentes tenham controle sobre suas produções (alguns menos, outros mais), quando se está abaixo de uma distribuidora, que irá colocar o produto no mercado e, de fato, vendê-lo, é difícil criar obras autorais.
Mas quem seria o autor, quando se fala em videogame, onde jogos são quase que inevitavelmente criados por dezenas, centenas de pessoas, para que possam tomar forma? E mesmo que exista um indivíduo responsável pela criação da ideia central do jogo, ele pode ser considerado automaticamente, portanto, o autor daquela obra? E por que raios isso é importante?
Antes de continuar, tome alguns minutos para jogar este jogo - ele roda diretamente no navegador, é curto, simples e importante para esclarecer alguns pontos deste artigo.
Talvez você já o conheça: chama-se Dys4ia (“dysphoria”) e é baseado nas experiências com terapia de reposição hormonal da autora, a transsexual Anna Anthropy . Um dos maiores triunfos de Dys4ia é a maneira como a insatisfação da autora com seu próprio corpo, gênero e identidade é representada através de minigames simples, rápidos e intuitivos. A poderosa combinação de interatividade (mesmo que mínima), metáforas, abstração visual, narrativa e trilha sonora faz com que a infelicidade e as consequentes pequenas conquistas resultantes do tratamento da autora sejam transmitidas de forma rápida e tocante ao jogador, permitindo uma fácil identificação com as questões pessoais da “personagem” em poucos minutos.
Dys4ia é um jogo autoral e autobiográfico, que jamais poderia ter sido criado por uma empresa, por vários motivos. O mais óbvio deles é pela questão comercial: Dys4ia não segue os padrões do que a maioria dos jogadores espera de um jogo. É curto demais, simples demais (do ponto de vista comercial), e não é exatamente “divertido”. Por essas razões, alguns podem até contestar a afirmação de que Dys4ia é um jogo. Ao mesmo tempo, Dys4ia é extremamente valioso em mostrar a capacidade da linguagem do videogame de comunicar e transmitir ideias e simular o ponto de vista de um indivíduo em uma sociedade. Ou seja, Dys4ia é um jogo relevante.
Anthropy é dedicada em atuar na “desmonopolização” da linguagem e ofício do game design pelas grandes companhias, permitindo que cada vez mais indivíduos vejam o desenvolvimento de videogames como algo acessível, que se pode fazer em casa. Em seu livro Rise of the Videogame Zinesters , cujo extenso subtítulo define muito bem as ideias ali contidas (“Como loucos, normais, amadores, artistas, sonhadores, desocupados, bichas, donas de casa e pessoas como você estão tomando de volta uma forma de arte”, numa tradução livre), Anthropy analisa a cultura emergente de criadores independentes de jogos, que usam a linguagem como plataforma de expressão.
Sua ideia é clara: indivíduos são personalidades únicas, e possuem uma visão particular do mundo, enquanto empresas são coletivos de pessoas que não podem se expressar com a única finalidade de se expressar. Empresas existem para gerar lucro e é difícil encontrar apelo comercial em uma visão muito particular e individual do mundo, por mais interessante que ela seja.
E mesmo que uma empresa decida investir em uma ideia original, sugerida por um indivíduo, quando dezenas de pessoas trabalham para transformá-la em um produto comercial de grande abrangência, capaz de retornar o investimento financeiro de múltiplos investidores, é difícil para o autor manter sua visão quando ela é levada para a linha de produção. Lá, ela é mutilada em partes e distribuída para diferentes mãos e cabeças, que coletivamente compõem a obra final. Assim, não apenas é difícil identificar um único indivíduo criativo responsável por uma obra comercial como, muito menos, um ponto de vista, visão, argumento ou mensagem relevante para o mundo ao seu redor.
Daí a importância dos desenvolvedores independentes, que são (quase sempre) livres da pressão de investidores e do risco que obriga as grandes empresas a se manterem em uma área segura, evitando a experimentação. Dessa liberdade criativa vem a expressão pessoal: jogos deixam de ser focados apenas em características (“40 horas de jogo”, “árvore de talentos com 80 habilidades diferentes”, “gráficos ultrarrealistas”) e passam a comunicar ideias, gerar discussões, transmitir sensações e despertar sentimentos além daqueles tão comuns aos jogos comerciais, muitas vezes em algumas poucas horas de jogo.
Algo que os desenvolvedores independentes estão descobrindo aos poucos é a eficácia dos jogos de contarem histórias através de metáforas. Papo & Yo , de Vander Caballero (que abandonou a Electronic Arts para fundar seu estúdio Minority ), à primeira vista, é apenas um jogo de fantasia surreal, estrelado por um garoto e um monstro. Conforme o jogo se desenrola, você compreende que o monstro é o pai alcoólatra do autor que o agredia em sua infância, e que a própria experiência reflete o tratamento psicológico de superação de Caballero.
Edmund McMillen , cuja faceta de autor foi explorada no documentário Indie Games: The Movie , busca metáforas e subjetividade em seus jogos como forma de expressar suas opiniões. Por trás do visual grotesco e cartoon de The Binding of Isaac , seu último jogo, há críticas claras ao fanatismo religioso e outras não tão claras à repressão sexual.
Ainda que grandes empresas possam apostar em jogos autorais, como a Sony apostou em Papo & Yo, é comum que elas prefiram não se associar a opiniões individuais, como fez a Nintendo ao impedir que The Binding of Isaac não fosse lançado em sua plataforma 3DS ou a Apple, ao deletar mais de 5 mil jogos da App Store por conteúdo sexual - inclusive aqueles que poderiam ter algum conteúdo, de fato, relevante sobre sexo. É por isso que a internet e, consequentemente, os jogos digitais, por download, são tão compatíveis com os jogos independentes e autorais: não há ninguém ali te impedindo de usá-los para se expressar.
Talvez o tremendo sucesso de Journey , para o PlayStation 3 , seja sinal de que as pessoas estão interessadas em ver mais jogos carregados de significado, capazes de despertar emoções e que não se configurem apenas como uma diversão autocentrada ou forma de escapismo. O fato de a Sony ter investido na produção do game (tal como tem investido em tantos outros jogos autorais e experimentais para a PlayStation Network) também aponta que as empresas estão percebendo a relevância dos jogos como plataforma de expressão individual.
FONTE:
http://arena.ig.com.br/2012-09-03/artigo-voce-pode-criar-jogos-que-empresas-nao-podem.html
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