quarta-feira, 27 de março de 2013

Artigo: Que tal fazer grandes jogos como empresas de grandes nomes?


Jogos AAA, como são chamadas as grandes produções dos videogames, só podem ser desenvolvidos por equipes grandes, compostas de artistas, programadores e designers que, cada qual com sua especialidade, contribuem para produzir um produto comercial que deve, acima de tudo, gerar lucro para a companhia que está investindo no projeto. É assim que funcionam as empresa - qualquer empresa. Ainda que estúdios independentes tenham controle sobre suas produções (alguns menos, outros mais), quando se está abaixo de uma distribuidora, que irá colocar o produto no mercado e, de fato, vendê-lo, é difícil criar obras autorais.

Mas quem seria o autor, quando se fala em videogame, onde jogos são quase que inevitavelmente criados por dezenas, centenas de pessoas, para que possam tomar forma? E mesmo que exista um indivíduo responsável pela criação da ideia central do jogo, ele pode ser considerado automaticamente, portanto, o autor daquela obra? E por que raios isso é importante?

Antes de continuar, tome alguns minutos para jogar este jogo - ele roda diretamente no navegador, é curto, simples e importante para esclarecer alguns pontos deste artigo.


Talvez você já o conheça: chama-se Dys4ia (“dysphoria”) e é baseado nas experiências com terapia de reposição hormonal da autora, a transsexual Anna Anthropy . Um dos maiores triunfos de Dys4ia é a maneira como a insatisfação da autora com seu próprio corpo, gênero e identidade é representada através de minigames simples, rápidos e intuitivos. A poderosa combinação de interatividade (mesmo que mínima), metáforas, abstração visual, narrativa e trilha sonora faz com que a infelicidade e as consequentes pequenas conquistas resultantes do tratamento da autora sejam transmitidas de forma rápida e tocante ao jogador, permitindo uma fácil identificação com as questões pessoais da “personagem” em poucos minutos.

Dys4ia é um jogo autoral e autobiográfico, que jamais poderia ter sido criado por uma empresa, por vários motivos. O mais óbvio deles é pela questão comercial: Dys4ia não segue os padrões do que a maioria dos jogadores espera de um jogo. É curto demais, simples demais (do ponto de vista comercial), e não é exatamente “divertido”. Por essas razões, alguns podem até contestar a afirmação de que Dys4ia é um jogo. Ao mesmo tempo, Dys4ia é extremamente valioso em mostrar a capacidade da linguagem do videogame de comunicar e transmitir ideias e simular o ponto de vista de um indivíduo em uma sociedade. Ou seja, Dys4ia é um jogo relevante.


Anthropy é dedicada em atuar na “desmonopolização” da linguagem e ofício do game design pelas grandes companhias, permitindo que cada vez mais indivíduos vejam o desenvolvimento de videogames como algo acessível, que se pode fazer em casa. Em seu livro Rise of the Videogame Zinesters , cujo extenso subtítulo define muito bem as ideias ali contidas (“Como loucos, normais, amadores, artistas, sonhadores, desocupados, bichas, donas de casa e pessoas como você estão tomando de volta uma forma de arte”, numa tradução livre), Anthropy analisa a cultura emergente de criadores independentes de jogos, que usam a linguagem como plataforma de expressão.

Sua ideia é clara: indivíduos são personalidades únicas, e possuem uma visão particular do mundo, enquanto empresas são coletivos de pessoas que não podem se expressar com a única finalidade de se expressar. Empresas existem para gerar lucro e é difícil encontrar apelo comercial em uma visão muito particular e individual do mundo, por mais interessante que ela seja.

E mesmo que uma empresa decida investir em uma ideia original, sugerida por um indivíduo, quando dezenas de pessoas trabalham para transformá-la em um produto comercial de grande abrangência, capaz de retornar o investimento financeiro de múltiplos investidores, é difícil para o autor manter sua visão quando ela é levada para a linha de produção. Lá, ela é mutilada em partes e distribuída para diferentes mãos e cabeças, que coletivamente compõem a obra final. Assim, não apenas é difícil identificar um único indivíduo criativo responsável por uma obra comercial como, muito menos, um ponto de vista, visão, argumento ou mensagem relevante para o mundo ao seu redor.

Daí a importância dos desenvolvedores independentes, que são (quase sempre) livres da pressão de investidores e do risco que obriga as grandes empresas a se manterem em uma área segura, evitando a experimentação. Dessa liberdade criativa vem a expressão pessoal: jogos deixam de ser focados apenas em características (“40 horas de jogo”, “árvore de talentos com 80 habilidades diferentes”, “gráficos ultrarrealistas”) e passam a comunicar ideias, gerar discussões, transmitir sensações e despertar sentimentos além daqueles tão comuns aos jogos comerciais, muitas vezes em algumas poucas horas de jogo.


Algo que os desenvolvedores independentes estão descobrindo aos poucos é a eficácia dos jogos de contarem histórias através de metáforas. Papo & Yo , de Vander Caballero (que abandonou a Electronic Arts  para fundar seu estúdio Minority ), à primeira vista, é apenas um jogo de fantasia surreal, estrelado por um garoto e um monstro. Conforme o jogo se desenrola, você compreende que o monstro é o pai alcoólatra do autor que o agredia em sua infância, e que a própria experiência reflete o tratamento psicológico de superação de Caballero.

Edmund McMillen , cuja faceta de autor foi explorada no documentário Indie Games: The Movie , busca metáforas e subjetividade em seus jogos como forma de expressar suas opiniões. Por trás do visual grotesco e cartoon de The Binding of Isaac , seu último jogo, há críticas claras ao fanatismo religioso e outras não tão claras à repressão sexual.


Ainda que grandes empresas possam apostar em jogos autorais, como a Sony apostou em Papo & Yo, é comum que elas prefiram não se associar a opiniões individuais, como fez a Nintendo ao impedir que The Binding of Isaac não fosse lançado em sua plataforma 3DS ou a Apple, ao deletar mais de 5 mil jogos da App Store por conteúdo sexual - inclusive aqueles que poderiam ter algum conteúdo, de fato, relevante sobre sexo. É por isso que a internet e, consequentemente, os jogos digitais, por download, são tão compatíveis com os jogos independentes e autorais: não há ninguém ali te impedindo de usá-los para se expressar.

Talvez o tremendo sucesso de Journey , para o PlayStation 3 , seja sinal de que as pessoas estão interessadas em ver mais jogos carregados de significado, capazes de despertar emoções e que não se configurem apenas como uma diversão autocentrada ou forma de escapismo. O fato de a Sony ter investido na produção do game (tal como tem investido em tantos outros jogos autorais e experimentais para a PlayStation Network) também aponta que as empresas estão percebendo a relevância dos jogos como plataforma de expressão individual.

FONTE: http://arena.ig.com.br/2012-09-03/artigo-voce-pode-criar-jogos-que-empresas-nao-podem.html




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